terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Intolerancia alimentar

Esse texto é  a parte "dois" do texto anterior. Apenas com outro título. Eu coloquei assim, por que ainda tenho mais coisas pra falar sobre o assunto. 
Emendo um artigo no outro. E para quem leu o texto anterior vai ficar fácil de seguir o raciocínio. Para quem nao leu, convido a ler para nao se perder.


Falando de estereótipos, nao posso deixar de falar que certas pessoas, dependendo do grau de instrucao e do interesse em saber mais, sao menos propícias a formar opinioes absurdas sobre diferentes culturas e modos de vida. E o contrario acontece com os outros: se você é mais ignorante, você vai se deixar levar mais rápido pelo preconceito. Simples assim. Pessoas preconceituosas sao ignorantes. E as pessoas ignorantes recebem de mim apenas a minha pena e algumas vezes -  dependendo da barbaridade que foi dita ou cometida - meu desprezo. Esse desprezo procuro disfarcar bem, para nao ser intolerante. Mas em alguns momentos nao dá pra disfarcar e aí eu acabo soltando um comentario agudo e ácido, que faz com que certas pessoas passem a me detestar. Acontece.



Foto feita nas minhas últimas férias no Brasil
Vendo essa foto me deu até fome.
 Acho que ando precisando de outras férias.
Eu fui casada com um alemao por três anos. E se nao bastasse isso, morava junto com os meus sogros. Eles eram pessoas provenientes de uma educacao rígida de uma geracao marcada pela ideologia socialista da Alemanha Oriental. Nao sei se vocês sabem, mas na Alemanha Oriental, trabalhar era um direito e um dever de todo cidadao. Se voce fosse ser humano, tinha que trabalhar. Atualmente muitos alemaes que viveram naquele tempo reclamam das taxas de desemprego. Compreensível quando você descobre que na DDR, se voce nao fosse trabalhar, a policia ia na sua casa e te levava a forca pro trabalho. Entao por isso que para os alemaes do leste um trabalho é algo assim, natural. É como comer, beber e dormir. Faz parte das necessidades básicas de uma pessoa.


Com meus ex-sogros o cenário nao era diferente: eu estava alí, morava na casa deles e tinha que levantar cedo e trabalhar. Para eles, era inadmissivel que eu tivesse interesse em ir a uma universidade e estudar (para depois poder trabalhar). Muitas vezes ouvi meu ex-sogro dizer que eu devia me candidatar a uma vaga num supermercado e arrumar um trabalho de caixa ou repositora de estoque. Isso é trabalho. Isso faz sentido. Estudar é perda de tempo.


Bom, minha ex-sogra tinha outras aspiracoes para mim: ela estava disposta a me transformar em uma perfeita dona de casa alema. Como eles eram aposentados e na faixa dos 70 anos (e pessoas nessa idade nao costumam dormir muito), ela reclamava os meus fins de semana para ensinar-me as coisas do lar. Eu tinha que me levantar as oito horas da manha nos sábados e domingos (geralmente eu queria dormir até o meio-dia, pois tinha levantado a semana inteira às cinco e meu único desejo era poder descansar), ir a cozinha da casa dela para que ela me ensinasse a cozinhar, assar e preparar comidas que seu filho gostava (!). Eu tinha sempre a impressao que ela estava crente de que eu vinha de alguma floresta selvagem, vivia pelada, dormia em árvores e que me alimentava dos frutos das àrvores. Só pode. Outra explicacao coerente nao encontrei até hoje.


Como eu nunca fui fa de comida alema, nunca me interessei de verdade pelas "aulas" que ela me dava. Adoro cozinhar, mas pouco do que faco é alemao. Prefiro comida italiana, chinesa, grega, tailandesa, espanhola e portuguesa. E claro, em primeiro lugar, comida brasileira.
Eu fazia as vontades dela para nao desapontá-la. Ela era velhinha, coitada. Queria se sentir útil. Eu, as vezes me fazia de besta, perguntando algo, para que ela viesse com seus olhinhos azuis cheios de satisfacao me explicar que uma pitada de sal faz parte da massa de biscoitos.
Comendo um steak de carne de porco no mercado natalino de Erfurt.
 Vejam a expressao indescritível de contentamento no meu rosto.
E sempre que ela me ensinava a cozinhar, eu sofria um bombardeio de milhoes de perguntas sobre o Brasil: ela queria saber se lá tinha morangos, se havia macas, se havia farinha de trigo, se as pessoas cozinhavam usando um fogao. Eu respondia com paciência e explicava que no Brasil também se encontram coisas que existem aqui na Alemanha. Algumas coisas eram mais simples de achar, outras nao. 
Ela parecia entender. Porém, dois minutos depois, ela voltava ao questionamento: "Tem computador lá?", "e cachorro, tem?", "vocês ficaram sabendo da queda das Torres Gêmeas lá?"



Um dia, eu me levantei de saco cheio. Tava de mau humor, morrendo de sono e sem vontade de aprender a fazer chucrutes com salsichao. Mas como tinha combinado com ela, fui a cozinha. Logo que ela terminou de dar as instrucoes de preparo da comida (ela sempre se sentia nessa parte como uma "Ana Maria Braga" moderando um programa culinário) e comecou o questionamento, eu enlouqueci. Respondi no tom mais sarcástico e azedo que uma pessoa que levanta já de mau humor pode responder:
Comida de verdade: Arroz, feijao, farofa e frango
com polenta e quiabo.
 COMIDA PARA MIM É ISSO.
 
- Escute bem, minha senhora, o Brasil é um país em desenvolvimento. Isso significa que nós temos telefone, internet, carros, e para você ter uma ideia, até avioes. Exportamos nossos produtos para o mundo inteiro e consumimos quase tudo o que vocês aqui na Alemanha consomem. Compramos geladeiras, televisoes, celulares etc. Nao vivemos em árvores, em florestas e muito menos andamos pelas ruas vestindo um tapa-sexo. E se você quer saber, a comida da minha terra é dez vezes melhor que a comidinha que você tenta me ensinar a fazer. Peco licenca, vou voltar pra minha cama. Se a senhora quiser, mais tarde eu venho aqui e te mostro o que é comida de verdade. Agora vou dormir.


Nao preciso nem descrever a cara azeda que ela fez nesse momento. Contrariei todas as regras de boa educacao; nao quis saber das suas aulas de culinária, dei uma resposta atravessada e fui deitar-me outra vez, às 8:30 da manha. Cometi um crime cultural horrendo.
 A partir desse dia ela nunca mais fui forcada a sair da cama mais cedo nos fins de semana para aprender as artes da culinária germânica.
E eu mais uma vez, fui vítima da minha própria intolerancia contra os ignorantes, que ainda nao se deram conta de que o Brasil há muito tempo deixou de ser uma colônia dos países europeus do século XV. 
Nunca mais a velha se colocou a disposicao para me ensinar a fazer mais nada. Gracas a Deus.


6 comentários:

  1. Vc chegou a preparar algo da culinária brasileira p/ eles?

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  2. Oi! Sim, várias vezes. Mas depois de um certo tempo, eu acabei desistindo de fazer comida brasileira para eles provarem. Por que eles sao acostumados e um outro tipo de comida aqui: batatas, um molho e carne de porco. Ou cozidos com repolhos, sopas com muita gordura e coisas do gênero.
    Eu fiz pudim de leite e brigadeiro de sobremesa para meus sogros uma vez. Eles provaram e disseram que as sobremesas estavam muito doces. Alemaes sao acostumados a comerem coisas com pouco acúcar. Pra voce ter uma idéia, eles bebem café e chá sem adocar.

    Numa outra ocasiao, fiz arroz com frango desfiado, num molho branco (creme de leite) e coberto com batata palha. Meus sogros disseram que nao aprovaram por que estava muito seco (?). Experimentei fazer feijoada e coxinha e recebi a aprovacao (nao dos meus sogros, pois eles sempre reclamavam de alguma coisa e pediam para que eu fizesse comida típica alema, mas de outras pessoas).

    Aqui sempre só faco comida brasileira quando estou com vontade de comer, por que fiquei traumatizada. As outras pessoas que conheco e que já provaram gostaram, mas a experiencia com os meus ex-sogros me deixou bastante traumatizada nesse aspecto.

    Hoje em dia cozinho mais comida alema que brasileira: primeiro, pela falta de ingredientes (dificil achar feijao aqui em Halle) e segundo pela comodidade. Comida alema é menos saborosa, porém nao é tao trabalhosa na hora de preparar quanto a nossa comida. E também por que eu nao sou muito fan de ficar horas cozinhando e depois ter um montao de panelas pra lavar..rsrs

    Em breve vou postar um texto sobre as coisas mais esquisitas e atípicas que eles estao acostumados a comer/beber por aqui. Vai ser bem interessante.

    Obrigado por comentar!

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  3. Olá Índira, conheço sim sua cidade é perto de outra que adoro, Merseburg.
    Sua cidade é linda sim: a Marktplatz e a maravilhosa Unser Lieben Frauen, a Roter Turm...
    Obrigada pela visita lá no meu site. Abraços.
    www.alemanhaporquenao.com

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  4. Puxa, que bacana! bom saber que você conhece Halle.

    Entao, eu to sempre acompanhando suas postagens!

    Um Abraco!

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  5. Cheguei aqui através do comentário que deixou no Blog da Angela.
    Li alguns dos seus artigos e a forma como encara a Alemanha e os seus habitantes.

    É interessante conhecer como outras pessoas estrangeiras se sentem ao viverem na Alemanha.

    Eu por exemplo nunca me senti de alguma forma "rotulada" com um determinado perfil, ou esperarem que encaixe num certo padrão, por não ser alemã.

    Talvez tal se deva, como referiu, a eu não viver na antiga Alemanha de Leste, mas sim em Munique e aqui haver uma mentalidade muito mais liberal e acolhedora aos estrangeiros. Pelo menos é isso que eu sinto.

    A ideia que tenho dos alemães, é de serem em geral pessoas bastante interessadas em aumentarem os seus conhecimentos, seja pela cultura, turismo ou tradições de outros povos.

    Não são dos povos mais simpáticos e afáveis que conheço, mas parecem muito disponíveis em ajudar e sanar as nossas dúvidas quando necessário. Por outro lado são um povo rigoroso e disciplinado o que é sempre algo positivo, porque ajuda a saber com o que se pode contar.

    Só posso falar das minhas experiências, e as mesmas foram sempre positivas.

    Por certo voltarei a espreitar o seu blog.

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  6. Olá Turista Ocasional!

    Concordo com você em alguns pontos. Agora algo que nós nao devemos esquecer é que existem "alemaes" e "alemaes". Eu gosto as vezes de exagerar nos textos, por que me acostumei à escrita sarcástica. E pq sou pessimista de nascenca. Batizada e crismada pelo santo sacramento niilista.
    Há, claro, alemaes que se interessam por saber de onde viemos e quem somos, e muitos deles sao extremamente prestativos. Tive a oportunidade de ver isso depois que me mudei para Halle (Saale). Conheci muitos deles dispostos a compartilhar as coisas que sabem, interessados em aumentarem seus conhecimentos (citando suas palavras) e um pouco mais abertos. Porém - por mais absurda que pareca para uma pessoa que vive numa cidade super cosmopolita como Munique - a situacao que descrevi no texto acima foi verídica; eu vivia numa regiao isolada em Thüringen, especificamente num povoado de 400 habitantes. Eu era a única estrangeira de lá. E essa regiao sempre foi conhecida por ser bem tradicional e conservadora. Mais pra frente vou publicar um texto explicando em detalhes como foi a experiência. Essa foi a minha primeira impressao pessoal da Alemanha. E você sabe, a primeira impressao é a que fica: eu vivia isolada, sozinha, trabalhava muito para satisfazer a vontade dos meus sogros e marido e nao tinha contatos sociais. Sofri preconceito algumas vezes (nao por ser brasileira, mas estrangeira) e já fui inclusive atacada numa estacao de onibus, por jovens bebados. Acho que isso mexeu bastante com o meu modo de ver as coisas aqui na Alemanha. Me tornei uma pessoa desiludida. Mas parei de tentar ficar batendo a cabeca na parede. E nao acredito que dar o troco com a mesma moeda ajude. Por isso, mudei minha tática e levo as coisas pelo lado mais humorado. Deixa eles serem sérios. Eu tento ir levando a vida dando risada e sendo sarcástica. E o fato de eu falar mal deles é para causar polêmica. Muitas vezes eu recebi apoio e ajuda deles. E no fundo do coracao, nao guardo magoas. É que com o passar do tempo, passei por um processo de adaptacao tao forte, que me tornei meio alema. Sou meio alema e meio brasileira. Isso é ótimo. Pois sendo assim, posso reclamar dos alemaes e dos brasileiros!!

    Gostaria muito de saber mais de suas experiências, sou super curiosa. E muito obrigada por comentar!

    Meu blog está sempre aberto para suas visitas!

    Um abraco!

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