terça-feira, 10 de abril de 2012

Gestos grandes, palavras poucas

Hoje recebi flores. Nao foi de um namorado, nao foi de um pretendente nem de um amor antigo arrependido. Nao foi um pedido de desculpas de uma amizade que um dia foi rompida. Nao foi um voto de melhoras, nem mesmo sentimentos de pêsames de alguém querido que se foi.

Foi um ato sincero de alguém, que agradeceu por eu entrar em sua vida. Sem falsas intencoes, sem máscaras, sem falsa modéstia. Foram flores mandadas por uma pessoa que conheco pouco e gosto muito. Alguém que me tira sorrisos e me proporciona horas de bate papo agradável. E nao espera de mim nada além de uma boa conversa agradável e um pouco de filosofia cotidiana.

Foi estranho receber flores; tenho 26 anos e nunca tinha recebido flores antes (com excecao das flores que se recebe de decoracao, os vasos de planta verde para casa, nao sabia o que era "receber flores").
Fiquei até aturdida ao abrir minha caixa de correio e ver um cartao da floricultura, dizendo que eu teria que buscar as flores que tinha recebido. Pensei se tratar de uma brincadeira e liguei para confirmar. Tava lá, um vaso me esperando. A atendente me explicou o caminho e disse num tom amavél: "acredito que a senhora que vai gostar das flores. O vaso vem de uma encomenda do estrangeiro. nao sei nem dizer em que lingua foi escrita a mensagem."

Fui cheia de curiosidade e espanto ver o que era. Milhoes de coisas me passavam pela cabeca, mas a primeira delas era: quem as teria me enviado? Pensei em diversas hipóteses e nenhuma me satisfez. Decidi nao especular mais e me deixar surpreender.
Antes da entrada principal da floricultura, há uma cerca de arame mostrando bem o porquê das pessoas encomendarem flores: a floricultura, em primeiro lugar, está ao lado do cemitério. Do lado de lá da cerca de arame, haviam epitáfios com as mais distintas mensagens de consolo, gravadas em pedras de granito e mármore. E flores. Mandar flores para cumprimentar os familiares que acabaram de perder seus entes queridos é a fonte principal, da qual aquela floricultura tira seu sustento.Sempre tive em mente que flores simbolizavam a vida, o renascimento, a primavera, a sensibilidade e o amor. Mas nao apenas: as flores conseguem demonstram aquela intencao de "apoiar os amigos" que a gente nao sabe muito bem como expressar. As flores dizem que a gente se preocupou e faz a gente se sentir menos inutil numa situacao tao trágica como a morte. Especialmente quando a dor da perda de um ente querido nos tira as palavras da boca. Resumindo: flores sao muletas para o nosso medo de nao ter a palavra certa para dizer no momento difícil como esse; elas fazem nos sentirmos menos deslocados.
Aqui na Alemanha as pessoas sofrem de uma doenca gravissima: elas têm uma certa dificuldade em exprimir sentimentos. Nunca vi um homem alemao presentear a mulher almejada com flores. Só em filmes ou na tevê. As flores aqui têm um significado mais trágico que em qualquer outro lugar. das duas uma: ou servem para decorar alpendres, ou decorar túmulos. Levar flores nos bracos significa na maioria das vezes uma fatalidade. Quase nunca há algo de positivo nesse gesto.
Me parece estranho tudo isso. Associar flores apenas com tragédia e morte me deixa pensativa: como nós, seres humanos, somos capazes de deturpar coisas tao belas para o lado mais desagradável que existe: o da dor da perda? E as flores, pobrezinhas, vao substituir o vazio da perda? Jamais. Elas nao fazem diferenca numa hora dessas, nao tiram um sorriso do rosto, nao secam as lágrimas nem enchem o coracao de felicidade de ninguém.
Eu desejaria que as pessoas mandasse mais flores umas para as outras por motivos nobres: felicitacoes por conquistas profissionais ou pessoais, grandes acontecimentos ou apenas para dizer a alguém: "hoje pensei em você e quis botar um sorriso alegre no seu rosto".

Bom, busquei a encomenda, li o cartao: estava escrito em espanhol, por um amigo franco-argelino, que quis apenas me fazer um agrado: ele nao tinha a intencao de me paquerar e muito menos de expressar algo com o gesto que nao poderia dizer com palavras. Quis me agradecer pelas conversas que temos e pelos momentos bons. E eu me deixei surpreender com prazer. Meu coracao se encheu de alegria, meus olhos ficaram úmidos. Fiquei feliz pelo simples gesto. E confesso que pensei, cá com meus botoes: "que bom que ele nao é alemao. Se fosse, receberia essas flores apenas quando nao houvesse mais nada o que dizer." Ou seja, quando eu já nao existisse mais e meus entes queridos precisassem de um consolo que nao pode ser exprimido com palavras. E sim com flores.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Nudez premeditada

Pois é! A primavera chegou! Aos poucos as flores comecam a aparecer e os brotos dos arbusto secos vao surgindo e vao lentamente enchendo as ruas de vida. Lentamente o verde vai dominando e os rastros do rigoroso inverno vao sendo encobertos pela essencia primaveril.

Com isso, os alemaes vao ficando loucos. As pessoas se sentem renovadas. Muito comum aqui é a limpeza de primavera: as pessoas reviram a casa de pernas pro ar, trocam moveis de lugar, limpam as 21 janelas de vidro de suas casas, lavam as cortinas, edredons, tapetes e o que tiver pela frente. Muitos comecam organizando armários, tirando roupas que já nao usam e jogando no lixo prospectos de desconto que estao guardados nas gavetas. Outros comecam a se preparar para o cultivo e a jardinagem. Primavera é tempo de flores e de plantar algumas verduras que vao ser colhidas no verao. E isso é extremamente visível quando as pessoas comecam a invadir as casas de contrucao (aqui se vendem flores e materiais de jardinagem nas casas de contrucao, conhecidas como "Baumarkt"). Carrinhos de compras ficam lotados de sacos de esterco e areia, potinhos de plantas e sementes de jacinto.
Tudo que é necessário para praticar a jardinagem e deixar o espírito de primavera entrar em sua vida!

Agora o mais legal é ver como as pessoas ficam realmente insandecidas quando o sol comeca a aparecer com frequencia. Pelo inverno aqui ser rigoroso e cinzento, todo mundo fica empolgado com a chegada do sol. As pessoas comecam a sair com as roupas mais leves, há gente passeando com as criancas, jovens andando de bicicletas por todas as partes e fazendo atividades ao ar livre. Muitos deles arriscam e saem de bermuda, apesar de ainda nao estar fazendo calor. As temperaturas todavia continuam baixas. Mas eles fazem isso pois o sol está a brilhar. Nessa época do ano você já se depara aqui com  pares espetaculares de pernas com bronzeado nórdico que variam do branco azulado para o branco bege. Imperdível.

Agora algo que mais me impressiona é a facilidade com que os alemaes têm em tirar a roupa. Num fim de semana ensolarado, em um gramado de um parque da cidade, nao é raro ver mulheres fazendo topless. Detalhe: temperatura externa está entre 12 e 14 graus Celsius. É o que a gente no Brasil chamaria de inverno.
Há uma represa perto de onde eu moro, onde as pessoas pagam uma entrada e vao para passar suas tardes de fins de semana com a familia. Indo pra lá, vc pode escolher em ficar vestido, mas preferencialmente o ambiente é nudista. E nao fiquem na ilusao de que indo pra lá, você vai ver corpos lindos e sarados. 99% dos que praticam nudismo sao pessoas a partir dos sessenta anos ou criancas. E senhoras extremamente gordas. Nao é lá uma visao muito agradável, diga-se de passagem.
Eu tomo banho de sol sim. Porém, vestida.
 Mas é cultural. Aqui no leste alemao as pessoas nao têm muito pudor. Me lembro de quando fui com meu ex-marido visitar meus pais e resolvemos sair. Ele disse que ia trocar de roupa e assim, sem mais nem menos abriu a mala, tirou uma bermuda de lá e comecou a tirar a roupa. De maneira natural. Eu e minha mae ficamos boquiabertas, nem tivemos tempo de reagir. E ele, depois de trocar de roupa, nos olhou, levantou e disse como se nada tivesse acontecido: vamos passear?

Agora a experiência que mais me deixou constragida passei logo que cheguei. Combinamos com amigos de ir a sauna. Bem, eu só conhecia a sauna no Brasil e nao sabia o que me esperava. Chegando lá, pus o biquini, tomei banho e pus o roupao. Ao entrar na parte da sauna, levei um choque: vi milhoes de pessoas andando de um lado pro outro, assim, completamente nuas! Eu quis entrar, nao conseguia. Tava paralisada. Os nossos amigos passaram na frente e já foram tirando o roupao. Nús. Eu fiquei roxa de vergonha. Meu ex-marido me perguntou qual era o meu problema. Eu olhei ao redor e disse: "voce nao está vendo? Tudo mundo tá pelado! sinto muito, nao dá. Nao tiro a roupa. Eu só entro de biquini." Ele olhou pra mim calmamente: "se você quiser pode entrar de biquini. Mas saiba que assim você vai chamar a atencao. Se quer ser igual, voce tira a roupa." Eu olhei pros amigos que estavam pelados, esperando pela gente. Olhei pros outros, que caminhavam tranquilamente, nus e felizes. Respirei fundo, contei até três e tirei o roupao e o biquini. O que passou pela minha cabeca foi apenas um velho ditado: "Tá na chuva é pra se molhar."

Depois disso, perdi o constrangimento de tirar a roupa na sauna. Foi um tremendo choque, mas tive que me acostumar. Na sauna, tudo é natural e ninguém olha pra ninguém. Ninguém se incomoda se você se depila estilo bigodinho de Hitler ou prefere deixar a mata selvagem dos anos 60. Ninguém verifica o tamanho e comprimento do seu bilau. As pessoas vao para sauna para suar e relaxar. Faz bem pra pele.

Agora uma coisa eu nao me disponho a fazer: topless no parque. Isso já é demais pra mim. Prefiro pensar que as temperaturas entre 12 e 14 graus ainda fazem parte do inverno, como no Brasil. O único que faco de  melhor é ficar observando essa gente e suas loucuras. De preferência, vestida.

terça-feira, 13 de março de 2012

Casa nova, cidade nova, vida nova

Foi por motivo de forca maior que fiquei sem escrever estes dias. Estava de mudanca de Halle para Nordhausen. Nao porém, como alguns pensam, por falta de assunto. Afinal sempre tem-se algo a dizer especialmente sobre alguma bizarrice germânica. O que me faltou foi tempo e a oportunidade de compartilhar com vocês, caros leitores.

Desde que cheguei a essas terras gélidas, me mudei umas trocentas e cinquenta vezes. As pessoas daqui, ao me conhecerem, sempre me perguntam onde eu morava antes. Eu, ao me deparar com a pergunta, retruco com outra pergunta:
    -Antes, quando? antes de vir para cá, ou desde os tempos mais primórdios da minha mísera existência?
Eis uma grande diferenca entre uma coisa e outra. Porque antes de vir para a cidade onde eu atualmente estou, Nordhausen, morei em Halle - na Saxônia-Anhalt - por seis meses. Fiz lá um estágio e me apaixonei pela diva cinzenta (assim é conhecida a cidade). Mas antes disso, morei em Eichsfeld, uma regiao minúscula no estado da Turingia e passei uma breve temporada de seis meses na regiao de Castilla, Espanha. E antes disso tudo, morei no Brasil em três estados diferentes e em diversas cidades. Foram tantas mudancas de casa que perdi a conta. Sou uma nômade desde que nasci.

Manha de outono, em uma ruazinha da "diva cinzenta"
Nao me queixo; muito pelo contrário, acredito que sou como sou, por ter tido vivências incríveis em diversos lugares. Estar sempre de um lado a outro, viajando, mudando, me fez mais independente e autônoma. Mexeu com minha visao de mundo, abriu minha cabeca, me fez aprender na marra. E me fez conhecer um bocado de gente incrível, com historias espetaculares. E lugares cheios de encantos, mistérios e curiosidades.
Sempre me lembro de lugares que passei e sempre caminho olhando pra frente. Desejo conhecer mais, aprender mais e vivenciar mais. E se der, rever os amigos e pessoas que conheci nas minhas caminhadas.
Meu pai me disse uma vez uma frase que me marcou muito. Ele disse que quando você viaja, você só se sente feliz e realizado quando está no caminho, antes de chegar a algum lugar. No caminho, você planeja, cria expectativas, está desejoso por rever as pessoas amadas. O reencontro é algo magnífico!
Porém, depois de alguns dias (ou quem sabe algumas horas?), você sente que algo está faltando. As coisas nao sao como eram antes. Ou sao da mesma maneira como eram antes. E isso, exatamente isso, que quando você estava longe te fez tanta falta, passa a te incomodar. E pouco a pouco, vai dando um comichao, uma inquietude, uma irritabilidade. As ruas, as casas, as pessoas, as árvores, as lojas, nada disso é tao familiar assim. Você se dá conta de que nada te pertence mais. Aí bate uma vontade de calcar as botinas e pôr o pé na estrada. Ou seja: estando longe, você que voltar. E voltando, você quer estar longe de novo. Vai entender.
Mas o ponto é que ele tinha a absoluta razao:

 Só se é feliz de verdade no caminho. Seja o de ida ou de volta.

Muitas pessoas me perguntam se eu vou ficar aqui pra sempre. E eu me pergunto se algum dia serei capaz de voltar. Nao sei a resposta. Estar mudando é divertido, é interessante. Mas nao creio que vou continuar sendo nômade aos 70 anos de idade. Porque viver viajando tem suas inconveniencias também. A bagagem que você tem que carregar é as vezes por demais pesada. Especialmente se você leva muitas coisas consigo. Entao, para facilitar, você vai se desfazendo de algumas coisas que sao suas, para carregar consigo só o essencial. Fazendo isso, você acaba jogando fora uma parte de si, da sua identidade, das suas conviccoes. Você nao muda só de ares: você muda automaticamente um bocadinho do seu jeito de ser. Você muda (geralmente sem querer) seu estilo de vida.

Eu estou numa nova casa e já me sinto diferente do que era há duas semanas atrás, quando ainda estava em Halle. Halle me faz falta, mas nao troco minha nova personalidade camaleonica atual por nada. Vivo aqui. Agora.

Chamei uns amigos e vou fazer uma festa de boas vindas aqui. Aproveitei e pedi uns presentinhos. Nao para mim, e sim para a nova morada. Ares novos, vida nova, coisas novas. E para nao perder um pouquinho da minha identidade, espalhei pelas paredes meus postais favoritos (coleciono postais dos lugares em que estive), meus quebra-cabecas, meus quadros e fotos das pessoas que amo.
A foto do meu pai está na parede do meu quarto. E sempre que a vejo, me lembro de suas palavras: "só se é feliz quando se está no caminho em direcao a algum lugar". Eu olho-a e penso comigo: "Estou no caminho, meu pai. Nunca sai dele. Estou no caminho da descoberta de mim mesma."


sexta-feira, 2 de março de 2012

Todo dia é dia de compras

Para os que estao vindo para Alemanha, vou contar como algumas coisas funcionam aqui. Ir ao supermercado significa encontrar-se com pessoas idosas, que têm todo o tempo do mundo para fazer suas compras e só vao ao supermercado e entram nas filas quando percebem que alguém está atrasado, cheio de compromissos e precisa comprar pao antes de ir ao trabalho. Ou podem ser vistas a noite, quando falta meia hora para o mercado fechar, quando os atendentes já estao exaustos de terem que desejar "Tenha um bom dia" desde as 11 da manha e nao estao com muito bom-humor. E você, deu o duro o dia inteiro e só deu uma passada alí para comprar o essencial para nao passar mais fome. O dia foi tao corrido que você até se esqueceu de comer, agora tá com uma fome tao grande que comeria um porco inteiro. Cru.

Nada contra os idosos, afinal um dia serei uma. Agora eu adoraria saber o por quê deles ficarem horas em frente a uma prateleira, sem se decidir o que levar e tampouco dar lugar paras os outros que querem pegar algum produto. E se você pedir licenca para eles nao vai resolver o seu problema. Eles te dizem em 99% dos casos algum desaforo. Sem mentira, os idosos alemaes podem ser algumas vezes muito mau educados. E a culpa disso, na opiniao deles é "desses jovens nao respeitam os mais velhos". Eles têm sempre a razao.
Quem é que que nao levanta as seis da manha para conferir
 uma promocao de pepinos? Irresistível!
Eu me lembro de quando tinha aulas pela manha e passava em frente ao supermercado Edeka a caminho da faculdade. Era sempre antes das oito da manha e o supermercado ainda estava fechado. E todos os dias da semana, quando passava alí, via uma fila enorme de aposentados na porta, esperando o mercado abrir. E se eu voltasse da universidade pela noite e tivesse a brilhante idéia de entrar para comprar qualquer coisa, ia encontrar os mesmos velhinhos que estavam na fila de manha, meia hora antes do mercado fechar.
Alguém me explica o por quê? Será medo de perder alguma coisa? seria alguma doenca degenerativa que os impede de comprar o que precisam uma ou duas vezes por semana e fazem com que eles tenham que ir três vezes ao dia ao mercado? Ou seria o medo de perder as ofertas que os fazem levantar as seis da manha, tomar café e ir pra fila, garantir seus lugares? 


Nao sei quanto a vocês, mas esse olhar me enche de medo.
Mais o que me incomoda mesmo, é quando chega a hora de você passar no caixa e eles estao lá com o carrinho cheio enquanto você tem apenas uma garrafa de água e uma barra de cereais pede para passar na frente. Você tem poucas coisas e está com um pouco de pressa. Experimente fazer isso. Eles arregalam os olhos cheios de raiva (igual ao olhar daquele assassino que matou a própria mae, o "Morre Diabo") e se recusam. Você é novo, tem todo o tempo do mundo. Eles sao aposentados, estao cheio de coisas pra fazer, agenda lotada de compromissos e nao podem te deixar passar na frente.


Só que eles nao contam com a lei da acao e reacao. Eles te sacanearam no mercado todo: ocuparam espaco para nao permitir que você alcance o produto, foram devagar de propósito na fila do acougue e do pao só para te atrasar mais e "esqueceram" o carrinho de compras atravessado no meio do corredor, só pra voce ter que dar uma volta gigante para pegar alguma coisa.
Aí vem a hora sua vinganca. E o melhor de tudo:  você nao precisa fazer absolutamente nada. Nao tem que mover um dedo.  As coisas tomam o seu rumo natural e o universo se vinga por você!!
Aqui na Alemanha, as pessoas mais rápidas desse mundo sao as atendentes de caixa dos supermercados. Elas te dizem bom dia e comecam a passar os produtos numa velocidade parecida com a velocidade da luz. Mal dá pra ver as maos delas. E é nessas que você pode imaginar o espetáculo: a senhora idosa que fez compras para o resto do mês  - que para você seria a compra do resto da sua vida, quase -, tentando pôr os produtos de volta no carrinho, (sozinha, já que aqui na Alemanha nao existe empacotador) e a atendente jogando os produtos de lado, amontoando tudo numa pilha velozmente. As latas de creme de leite comecam a cair no chao, junto com as embalagens de chá. E por um triz a garrafa de licor de ovos nao se espatifa toda. 


Sem se afetar, a atendente diz o valor da compras, com frieza. A velhinha, sem saber nem onde deixou a carteira, faz uma cara de desespero e procura a bolsa, que está soterrada embaixo das compras mal empacotadas onde você vê que os produtos de limpeza estao na mesma sacola onde está o pao integral.
Com esforco, a velhinha exausta tira a carteira da bolsa e paga. A atendente já despacha o comprovante de compras e deseja um bom dia. E se vira automaticamente para o próximo cliente. A metade das compras da velhinha ainda estao sobre o caixa. E você paga e passa pela velhinha desorientada e descabelada com seus dois produtos na mao, sem estresse, sem agonia e com um sorrisinho maldoso no rosto.



terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tauschring: servico de trocas

Quando converso com alguns amigos brasileiros que nao conhecem a Alemanha, sempre escuto perguntas como "o que existe aí que nao tem aqui?". É dificíl responder assim, de cara, pois há coisas aqui que existem no Brasil, mas sao um pouco distintas. E lembrar assim, tao rápido fica mais dificil depois de tanto tempo que vivo aqui. Aos poucos, algumas coisas vao se tornando normais para mim e eu acabo nao vendo muita novidade. Talvez seja por que eu ando desinformada e nao me intero do que já chegou no Brasil (afinal, muita coisa mudou no Brasil desde que saí de lá). Com o tempo vou me esquecendo. É assim que acontece, quando se vai envelhecendo!
Meu cérebro registra tudo como "uma coisa comum que deve existir em todo lugar do mundo". E aí, levo bem uns dias pensando na resposta para pergunta do meu interlocutor. E geralmente meu interlocutor nao tem tanto tempo assim disponível e muito menos saco para esperar o que eu tenho para dizer.

Assim, pensei bem numas coisas para poder escrever aqui. E vi ontem por acaso na TV, num programa chamado "Galileo"  (eu só assisto tevê alema) um projeto que existe aqui super interessante: Tauschring.


Logotipo do Tauschring (sistema de trocas de servicos) de Glinde
Fonte: 
www.tauschring-glinde.de/bilder/logo.index.gif


Tauschring é uma rede de comércio local sem fins lucrativos de bens e serviços que nao utiliza o dinheiro tradicional.
É um sistema de troca local que utiliza "o crédito" e nao é necessário fazer trocas diretasPor exemplo, um membro pode obter um empréstimo de babysitting para alguém e, em seguida, gastá-lo mais tarde, em uma carpintaria com outra pessoa da mesma redeNos sistemas de câmbio locais (ao contrário de outras moedas locais) nao sao oferecidos "bilhetes" (grana, bufunfa, dimdim) e sim "transações" (atividades, servicos, ajuda) que são coletadas em uma central, aberta a todos os membrosUma vez que o crédito é oferecido pelos membros da rede para o benefício de si mesmos, esse sistema de troca local também pode ser  conhecido como sistemas de crédito mútuo. Eu, particularmente chamaria isso de "servico de trocas solidarias".



 É uma idéia que já funciona em algumas capitais de estados alemaes e cidades grandes. O princípio é da troca de favores: você se registra gratuitamente colocando duas ou mais atividades das quais você pode oferecer e em troca, recebe pelo seu servico prestado algo chamado "Talento". E aí você tem acesso a uma lista de servicos disponiveis oferecidos por outras pessoas e pode receber algo em troca.


Um outro exemplo, para que fique mais claro: você se oferece para cortar cabelo de pessoas. Por esse servico, voce recebe 15 talentos. Com esses "talentos" você tem direito a receber algum servico que te interesse, tipo aulas de esqui, ajuda de alguém para empacotar a sua mudanca ou uma pessoa que esteja disposta a limpar as janelas  do seu apartamento.
O horário e os dias sao combinados entre você e a pessoa, através de contatos como e-mail ou telefone.


O servico de trocas é bom para se informar, fazer cursos, aprender coisas novas e ajudar pessoas, compartilhando com elas coisas que você sabe e gosta de fazer.


 As pessoas registradas no programa têm, claro, que respeitar algumas regras:  se você participa, você deve ter algo a oferecer. E estar disposto a ajudar outras pessoas. E claro, têm um prazo de validade para os talentos que você tem que pagar, que é de um ano, geralmente. 
Esse projeto é bem bacana para pessoas que têm vontade de conhecer outras pessoas. Ou que queiram ter contato com aqueles que possuem os mesmos interesses, ajudar, ocupar melhor o tempo livre e até - por que nao? - fazer amizades.


Afinal, aqui é algo dificil de conseguir: fazer amizades. E essa idéia ajuda as pessoas se encontrarem, se conhecerem e se ajudarem mutuamente.


Infelizmente nao posso falar por experiencia própria, já que nao tive a oportunidade de participar ainda. Aqui onde eu moro nao existe esse programa. Mas para pessoas que vivem em cidades como Munique, Düsseldorf, Hamburgo, Berlim, Colônia, Frankfurt, Dresden entre outras cidades fica a dica.


Aqui deixo alguns enderecos eletrônicos (infelizmente apenas em alemao) para as pessoas interessadas no programa:

http://www.tauschringadressen.de/ 
(para saber mais sobre como funciona e se registrar)

http://www.tauschring.de/adressen.php
(índice de enderecos do Tauschring)

http://www.tauschen-ohne-geld.de/tauschring-gr%C3%BCnden
(para criar um programa de troca de favores na regiao onde você mora)


Agora para os brasileiros que moram na Alemanha: vocês já participaram do Tauschring? Se já, como foi? Recomendariam?


E para os brasileiros que moram no Brasil: vocês já ouviram falar de algum programa como esse? existe algo parecido no Brasil?


Aguardo comentários!!





segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fotos do fim de semana


Esse fim de semana acordei super disposta. Enfrentei o friozinho chato de Halle e resolvi  dar uma volta pela cidade e passear pelo parque florestal Dölauer-Heide, ou como os hallenses dizem, "Heide" somente. Fiz umas poucas fotos que gostaria de compartilhar com vocês, enquanto o texto nao fica pronto.

Vista de Petersberg, in Halle: o ponto mais alto do estado
de Saxonia-Anhalt possui mais de 250 metros


Céu de um domingo frio

Essa pedra é para lembrar uma perseguicao da polícia secreta e de inteligencia da DDR.
Essa perseguicao a um  soldado das forcas armadas francesa acabou em tragédia no ano de 1984. O militar francês sofreu um acidente de carro fugindo da STASI e bateu numa árvore. Ele morreu no local.



Aqui a mesma foto, de outro ângulo.

Assim fica a floresta, quando o inverno vem e as folhas das árvores caem.







O homem passeando a tarde com seu cao: uma imagem comum de se ver na Alemanha.

Porém o inverno nao dura para sempre: a primavera está comecando a renascer outra vez.


Algo interessante do Parque Florestal Heide: as pessoas que cometiam suicidio ou que morriam e nao eram identificadas, eram enterradas aqui, nesse local. Uma parte do parque é um cemitério de indigentes e suicidas.

Caminho.




Até os suecos chegaram até aqui!






Vista do centro da cidade






Aqui foi escrito exatamente como os hallenses dizem "eu te amo".
Com o sotaque da Saxonia-Anhalt, a famosa frase "Ich liebe dich" se transforma em "Isch liebä diesch"











sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Liberdade

A liberdade é uma palavra tao cheia de significados e ao mesmo tempo tao indefinível. Como explicar a liberdade? Como defini-la? O que eu entendo por liberdade seria o mesmo que você?
Onde comeca o direito de uma pessoa de ser livre? Onde acaba?

A definicao do dicionário eu nao sei. Eu tenho a minha própria. Construi a partir dos conceitos que tinha quando sai de casa e pus o pé no mundo, aos quinze anos de idade. Conforme os anos que se passaram, fui aperfeicoando e aprendendo um pouco mais sobre a liberdade e descobri que no momento ela é o bem mais precioso que possuo. Depois de tantas mudancas, de andar por várias regioes e estar segura de que minha caminhada ainda está apenas comecando, aprendi a trazer poucas coisas comigo e estar preparada para recomecar tudo. Tudo novo de novo, como diz Paulinho Moska.

Acredito que ser livre é amar a vida incondicionalmente. E se alegrar com as coisas pequenas e momentos que passam pelos nossos olhos sem que a gente se dê conta. Sair pela manha, caminhar pelas ruas, observar as pessoas, ama-las ou odia-las. Mas nunca ser indiferentes. E nunca deixar de agradecer por ter essa maravilhosa oportunidade de se mover, de sair do lugar,  de sentir o vento baguncar os teus cabelos e poder ir até onde as tuas pernas te levarem.

Ser livre significa dizer o que queremos quando queremos. E significa arcar com as consequências que surgem depois.
Ser livre é ter o direito de se sentir triste ou indisposto também. Ser capaz de deixar o mundo passar e ficar só observando, perdido em pensamentos.
Ser livre é poder rever seus conceitos e príncipios. É  ser inconstante ou pouco flexivel. E mudar de opiniao, mudar de crenca, de ideologia, de ídolos - se você sentir que isso é necessario.
Ser livre é se apaixonar quantas vezes for preciso, sem se importar com a opiniao dos outros. Porém ser deixar de lembrar que toda acao tem uma reacao e que você é responsável por tudo que pode acontecer.
Ser livre é ser você mesmo, com todas suas vontades, idéias, desejos, medos, acoes impensadas (que podem ser positivas ou negativas) e loucuras.

Descobri que ser livre as vezes dói. Mas é uma dor que faz um parte de todo um processo de aprendizagem que passamos na vida. O livre arbítrio nos proporciona vários caminhos a seguir. Você pode escolher  da maneira mais irracional ou racional. O caminho vai ter sempre surpresas com as quais você nao contava. E há pedras que nos fazem cair e se machucar. E maos que nos alcancam e nós poem de pé outra vez.

Acho que de todas as licoes que aprendi desde que
vim para Alemanha, essa foi a mais valiosa: Aprendi a ser livre. E aprendi que nessa jornada que está apenas comecando, tudo o que vem pela frente tem seu lado belo,  completo e o lado desajeitado e torto. E que mesmo assim, do jeito que está, do jeito que vêm, tudo é como deveria ser. Tudo é perfeito. Inclusive a dor.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Surpresas gastronômicas em Eichsfeld

Como o tópico sobre comida despertou bastante interesse dos leitores, resolvi contar um pouco mais sobre o choque cultural que levei logo que cheguei. Isso foi para mim muito marcante, especialmente quando se fala em comida. Eu sempre comi com prazer; sou uma apreciadora. E ao meu ver nao tenho muita frescura, como quase de tudo. E ao vir pra cá, estava disposta a experimentar tudo o que viesse pela frente. O que eu nao sabia é que eu nao estava comendo uma comida típica alema e sim comida típica de uma regiao que vive isolada no meio da Alemanha do Leste e que conserva suas tradicoes vindas desde a Idade Média.

 Viví em Eichsfeld, uma regiao no estado da Thuringia geograficamente localizada no centro do país. 
Os moradores de lá sao conhecidos por serem trabalhadores, porém pessoas bem fechadas, de poucas amizades. Tudo nessa regiao gira em torno da agricultura. Eichsfeld é famosa  por seus embutidos. A salsicha da regiao é conhecida em boa parte do leste da Alemanha, assim como a carne de porco.


 Eu vivia em um povoado de 400 habitantes; havia uma igreja católica, havia  uma pequena creche e pronto. E duas ruas asfaltadas. Era como se fosse no Brasil um distrito. Quem já foi ao interior, sabe do que eu to falando. Ressalto isso para que vocês vejam, que as pessoas de lá nao tinham muito com o quê se divertir: suas vidas era composta de trabalho, nada mais.


Praticamente todos os moradores desse povoado eram pessoas mais velhas. E tinham uma pedaco de terra, no qual eles cultivavam batatas, morangos, groselha, amora, verduras em geral e tempeiro verde. E tinham algumas galinhas, gansos, patos e o melhor de tudo: porco.
 Preparando o embutido de Eichsfeld
Fonte: http://www.ndr.de/fernsehen/sendungen/nordtour/eichsfeld141
Uma vez por ano havia a Matança: geralmente se fazia isso no mês de outubro ou novembro, quando comeca  a esfriar. E eu tive a oportunidade de participar de uma. Os homens saiam para matar o porco, e as mulheres preparavam a lavanderia para o trabalho que se seguia: tirar o sangue, separar as carnes, desossar, retirar as entranhas e separar a gordura. A primeira vez que tive que fazer isso, fiquei arrependida por ter tomado café da manha. Toda a vez via a faca cortando, o sangue escorrendo, a gordura pingando e as entranhas sendo retiradas, comecava a sentir ânsias. O cheiro era extremamente forte e empesteava toda a casa. O chao estava coberto por papelao, e mesmo assim, a gordura passava através das camadas de papel e ensebava o azulejo.


Depois disso tudo, eles comecavam a preparar as linguicas: cozinhavam o sangue com muito tempero para preparar o chourico (no Paraná a gente chamava o embutido feito de sangue de chourico) e a moer a carne e o torresmo cru com temperos para fazer o embutido típico da regiao. Enquanto isso, uma outra pessoa limpava as tripas do animal para depois rechea-las. Nojento.
Perdi nesse instante a vontade de provar o embutido típico da regiao.


Alguém ja provou isso? eu por sorte, nunca!
Fonte: 
http://img.webme.com/pic/p/paulas-futterkrippe/009.jpg
Depois dessa trabalheira terrivel, que no geral demorava dois a tres dias inteiros, havia o jantar da Matança:
O dono da casa preparava diversos de pratos com a carne de porco: sopas com o caldo da carne (uma sopa com arroz com uma camada de gordura de porco de três centimetros) e uma outra sopa, que no momento em que sentei-me à mesa, nao soube bem ao certo o que era. Em cima da mesa também havia algo bem típico da regiao: Gehacktes. Gehacktes é a carne de porco moída. Nao entendi o porquê da carne estar sobre a mesa crua, com rodelas de cebola. Aí me dei conta, quando o jantar comecou, de que lá ela é consumida crua. Sim, isso mesmo: lá na regiao de Eichsfeld, as pessoas passam carne moida de porco crua no pao e poem umas rodelas de cebola, para depois degustar. Me lembro de que todos se alegravam especialmente nessa parte: todo mundo se servia primeiro de Gehacktes, depois comiam as outras "delícias". A primeiro momento, levei um choque. Na minha cabeca passou um filme:  Eu nunca me esqueci das aulas de ciências da professora Florinda, na sexta série sobre cisticercose e do verme que entra na corrente sanguinea e se aloja na cabeca da gente.
Carne moida de porco crua com pao,
 uma espcialidade culinária
 Eu nao me atrevi a encarar carne de porco crua com pao. Recusei. Isso passa dos meus limites de tolerancia. No Brasil, a gente vê a carne de proco com algo sujo e que se nao for bem preparada e cozida, pode transmitir doencas.
 Expliquei isso para eles, enquanto eles, (na minha visao naquele momento, devido as dadas circunstancias, bárbaros), se deliciavam mastigando com prazer e diziam que a carne era controlada e que isso nao existia aqui. Eu, por via das dúvidas, achei melhor nao arriscar. 
Quem come carne crua, pra mim é bicho.


Havia dois paneloes de sopa sobre a mesa, uma era a sopa com a camada gigante de gordura e uma outra, mais escura. Decidi provar a sopa que parecia ser menos gordurosa. Pus uma concha no prato e já desisti de cara: era uma sopa feita com as entranhas: coracao, rins, e sei lá mais o quê. Já tinha perdido o apetite. Olhei ao redor e vi todos a mesa, que comiam sem pausa, estavam tao concentrados que sequer conversavam. Só se ouvia o mastigar dos convidados. E eu nao tinha achado nada para comer e estavam azul de fome.


Em cima da mesa tinha uma vasilha com uma salada, parecia ser um tipo de maionese. Porém com alguma verdura, envolta em  iogurte natural, molho branco, sei lá o quê. Resolvi provar. Na primeira garfada que dei, senti um gosto super estranho. Perguntei a pessoa que estava ao meu lado o que era: ele me disse que era salada de alface com gomos de tangerina e iogurte. Temperada com salsinha, cebolinha e muito acúcar. Isso mesmo, acúcar. Aí eu desisti de vez.
Busquei com os olhos se havia algo na mesa que pudesse comer e que nao fosse preparado. Achei pao e pepino em conserva. Fora isso, nao me arrisquei em comer nada mais. Tava farta de surpresas desagradáveis já.


E foi assim que num jantar com mais de doze tipos de pratos diferentes, eu fui pra casa com fome.



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ah, se eu pudesse voltar...

Acho que tem dias que nao sao fáceis para ninguém. Especialmente para os brasileiros que vivem no exterior. Eu moro aqui há quatro anos; em agosto serao cinco. E reclamo de tudo e de todos o tempo todo. É normal para uma pessoa como eu sentir falta de casa. Interessante é que conheco muitos brasileiros que adoram a Alemanha e nao pensam em voltar a viver no Brasil nunca mais. E essas pessoas, por mais felizes e satisfeitas que se sintam com a escolha que fizeram, sempre têm um dia em que bate aquela saudade da terrinha. Isso me surpreende e me faz pensar. Imagino que essas pessoas as vezes se deparam com lembrancas da infância, da comida que comiam, da cidade onde viveram antes de vir pra cá...e tudo isso se transforma em uma dorzinha aguda, um tipo de nostalgia. Em alemao, existe uma palavra extra para denominar isso: Heimweh
Heimweh significa algo como "saudade da terra natal". Heim, lar, weh, dor.
Em português, tudo vira uma coisa só: saudade.


Todo estrangeiro que vive fora da sua terra conhece esse sentimento. Nao só. Pessoas que nasceram em um determinado estado e se mudaram para outro também sabem do que eu estou falando. Os nortistas e nordestinos que foram para o sul tentar a vida nas décadas de 50, 60, 70 e 80, com certeza sabem. Meus avós sao/eram cearenses. Foram morar nas terras frias do sul do Brasil na década de 60. Por serem muito pobres e terem quatro filhos, nunca tiveram a oportunidade de ir à Fortaleza para rever suas familias quando eram jovens. Minha avó morreu há dois anos sem realizar esse sonho: sonho de voltar a terra natal, onde o sol e o calor é aconchegante, onde as praias têm suas areias tao branquinhas e as pessoas sao simples e felizes. Assim que ela morreu, meu avô comprou uma passagem e estava decidido a nunca mais voltar ao sul. Pois estando lá, ele descobriu que se passaram quase 50 anos da sua vida. E que ele nao se acostumava mais ao calor, a praia. Muitos de seus amigos daquela época tinham falecido ou mudado. Fortaleza já nao era a mesma. E ele se deu conta, de que a terra dele agora era o sul, definitivamente. Pegou um aviao e voltou pro frio do Paraná.


Eu tenho medo de que isso aconteca comigo. Vivo há apenas quatro anos aqui, mas sei que terei um longo caminho pela frente até voltar pra casa. Vou ter que ficar aqui mais tempo do que eu imaginava. Dá um certo temor de ficar aqui mais tempo que devia e quando voltar, ter que me adaptar outra vez.  Recomecar tudo do zero. E descobrir que a terrinha mudou tanto que eu nao reconheco nada mais.


Essa música que vou postar é a minha cancao de saudades do Brasil. A letra dela, fala de uma pessoa que está sempre viajando e mora fora. E que sente saudades de alguém. Eu, dedico essa cancao a todos os meus amigos e as pessoas que amo e admiro. Dedico àqueles que por algum motivo eu nao possa estar perto.


Thiago Pethit: Mapa Mundi:  
http://www.youtube.com/watch?v=pXBIWw185oY


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Intolerancia alimentar

Esse texto é  a parte "dois" do texto anterior. Apenas com outro título. Eu coloquei assim, por que ainda tenho mais coisas pra falar sobre o assunto. 
Emendo um artigo no outro. E para quem leu o texto anterior vai ficar fácil de seguir o raciocínio. Para quem nao leu, convido a ler para nao se perder.


Falando de estereótipos, nao posso deixar de falar que certas pessoas, dependendo do grau de instrucao e do interesse em saber mais, sao menos propícias a formar opinioes absurdas sobre diferentes culturas e modos de vida. E o contrario acontece com os outros: se você é mais ignorante, você vai se deixar levar mais rápido pelo preconceito. Simples assim. Pessoas preconceituosas sao ignorantes. E as pessoas ignorantes recebem de mim apenas a minha pena e algumas vezes -  dependendo da barbaridade que foi dita ou cometida - meu desprezo. Esse desprezo procuro disfarcar bem, para nao ser intolerante. Mas em alguns momentos nao dá pra disfarcar e aí eu acabo soltando um comentario agudo e ácido, que faz com que certas pessoas passem a me detestar. Acontece.



Foto feita nas minhas últimas férias no Brasil
Vendo essa foto me deu até fome.
 Acho que ando precisando de outras férias.
Eu fui casada com um alemao por três anos. E se nao bastasse isso, morava junto com os meus sogros. Eles eram pessoas provenientes de uma educacao rígida de uma geracao marcada pela ideologia socialista da Alemanha Oriental. Nao sei se vocês sabem, mas na Alemanha Oriental, trabalhar era um direito e um dever de todo cidadao. Se voce fosse ser humano, tinha que trabalhar. Atualmente muitos alemaes que viveram naquele tempo reclamam das taxas de desemprego. Compreensível quando você descobre que na DDR, se voce nao fosse trabalhar, a policia ia na sua casa e te levava a forca pro trabalho. Entao por isso que para os alemaes do leste um trabalho é algo assim, natural. É como comer, beber e dormir. Faz parte das necessidades básicas de uma pessoa.


Com meus ex-sogros o cenário nao era diferente: eu estava alí, morava na casa deles e tinha que levantar cedo e trabalhar. Para eles, era inadmissivel que eu tivesse interesse em ir a uma universidade e estudar (para depois poder trabalhar). Muitas vezes ouvi meu ex-sogro dizer que eu devia me candidatar a uma vaga num supermercado e arrumar um trabalho de caixa ou repositora de estoque. Isso é trabalho. Isso faz sentido. Estudar é perda de tempo.


Bom, minha ex-sogra tinha outras aspiracoes para mim: ela estava disposta a me transformar em uma perfeita dona de casa alema. Como eles eram aposentados e na faixa dos 70 anos (e pessoas nessa idade nao costumam dormir muito), ela reclamava os meus fins de semana para ensinar-me as coisas do lar. Eu tinha que me levantar as oito horas da manha nos sábados e domingos (geralmente eu queria dormir até o meio-dia, pois tinha levantado a semana inteira às cinco e meu único desejo era poder descansar), ir a cozinha da casa dela para que ela me ensinasse a cozinhar, assar e preparar comidas que seu filho gostava (!). Eu tinha sempre a impressao que ela estava crente de que eu vinha de alguma floresta selvagem, vivia pelada, dormia em árvores e que me alimentava dos frutos das àrvores. Só pode. Outra explicacao coerente nao encontrei até hoje.


Como eu nunca fui fa de comida alema, nunca me interessei de verdade pelas "aulas" que ela me dava. Adoro cozinhar, mas pouco do que faco é alemao. Prefiro comida italiana, chinesa, grega, tailandesa, espanhola e portuguesa. E claro, em primeiro lugar, comida brasileira.
Eu fazia as vontades dela para nao desapontá-la. Ela era velhinha, coitada. Queria se sentir útil. Eu, as vezes me fazia de besta, perguntando algo, para que ela viesse com seus olhinhos azuis cheios de satisfacao me explicar que uma pitada de sal faz parte da massa de biscoitos.
Comendo um steak de carne de porco no mercado natalino de Erfurt.
 Vejam a expressao indescritível de contentamento no meu rosto.
E sempre que ela me ensinava a cozinhar, eu sofria um bombardeio de milhoes de perguntas sobre o Brasil: ela queria saber se lá tinha morangos, se havia macas, se havia farinha de trigo, se as pessoas cozinhavam usando um fogao. Eu respondia com paciência e explicava que no Brasil também se encontram coisas que existem aqui na Alemanha. Algumas coisas eram mais simples de achar, outras nao. 
Ela parecia entender. Porém, dois minutos depois, ela voltava ao questionamento: "Tem computador lá?", "e cachorro, tem?", "vocês ficaram sabendo da queda das Torres Gêmeas lá?"



Um dia, eu me levantei de saco cheio. Tava de mau humor, morrendo de sono e sem vontade de aprender a fazer chucrutes com salsichao. Mas como tinha combinado com ela, fui a cozinha. Logo que ela terminou de dar as instrucoes de preparo da comida (ela sempre se sentia nessa parte como uma "Ana Maria Braga" moderando um programa culinário) e comecou o questionamento, eu enlouqueci. Respondi no tom mais sarcástico e azedo que uma pessoa que levanta já de mau humor pode responder:
Comida de verdade: Arroz, feijao, farofa e frango
com polenta e quiabo.
 COMIDA PARA MIM É ISSO.
 
- Escute bem, minha senhora, o Brasil é um país em desenvolvimento. Isso significa que nós temos telefone, internet, carros, e para você ter uma ideia, até avioes. Exportamos nossos produtos para o mundo inteiro e consumimos quase tudo o que vocês aqui na Alemanha consomem. Compramos geladeiras, televisoes, celulares etc. Nao vivemos em árvores, em florestas e muito menos andamos pelas ruas vestindo um tapa-sexo. E se você quer saber, a comida da minha terra é dez vezes melhor que a comidinha que você tenta me ensinar a fazer. Peco licenca, vou voltar pra minha cama. Se a senhora quiser, mais tarde eu venho aqui e te mostro o que é comida de verdade. Agora vou dormir.


Nao preciso nem descrever a cara azeda que ela fez nesse momento. Contrariei todas as regras de boa educacao; nao quis saber das suas aulas de culinária, dei uma resposta atravessada e fui deitar-me outra vez, às 8:30 da manha. Cometi um crime cultural horrendo.
 A partir desse dia ela nunca mais fui forcada a sair da cama mais cedo nos fins de semana para aprender as artes da culinária germânica.
E eu mais uma vez, fui vítima da minha própria intolerancia contra os ignorantes, que ainda nao se deram conta de que o Brasil há muito tempo deixou de ser uma colônia dos países europeus do século XV. 
Nunca mais a velha se colocou a disposicao para me ensinar a fazer mais nada. Gracas a Deus.