quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Surpresas gastronômicas em Eichsfeld

Como o tópico sobre comida despertou bastante interesse dos leitores, resolvi contar um pouco mais sobre o choque cultural que levei logo que cheguei. Isso foi para mim muito marcante, especialmente quando se fala em comida. Eu sempre comi com prazer; sou uma apreciadora. E ao meu ver nao tenho muita frescura, como quase de tudo. E ao vir pra cá, estava disposta a experimentar tudo o que viesse pela frente. O que eu nao sabia é que eu nao estava comendo uma comida típica alema e sim comida típica de uma regiao que vive isolada no meio da Alemanha do Leste e que conserva suas tradicoes vindas desde a Idade Média.

 Viví em Eichsfeld, uma regiao no estado da Thuringia geograficamente localizada no centro do país. 
Os moradores de lá sao conhecidos por serem trabalhadores, porém pessoas bem fechadas, de poucas amizades. Tudo nessa regiao gira em torno da agricultura. Eichsfeld é famosa  por seus embutidos. A salsicha da regiao é conhecida em boa parte do leste da Alemanha, assim como a carne de porco.


 Eu vivia em um povoado de 400 habitantes; havia uma igreja católica, havia  uma pequena creche e pronto. E duas ruas asfaltadas. Era como se fosse no Brasil um distrito. Quem já foi ao interior, sabe do que eu to falando. Ressalto isso para que vocês vejam, que as pessoas de lá nao tinham muito com o quê se divertir: suas vidas era composta de trabalho, nada mais.


Praticamente todos os moradores desse povoado eram pessoas mais velhas. E tinham uma pedaco de terra, no qual eles cultivavam batatas, morangos, groselha, amora, verduras em geral e tempeiro verde. E tinham algumas galinhas, gansos, patos e o melhor de tudo: porco.
 Preparando o embutido de Eichsfeld
Fonte: http://www.ndr.de/fernsehen/sendungen/nordtour/eichsfeld141
Uma vez por ano havia a Matança: geralmente se fazia isso no mês de outubro ou novembro, quando comeca  a esfriar. E eu tive a oportunidade de participar de uma. Os homens saiam para matar o porco, e as mulheres preparavam a lavanderia para o trabalho que se seguia: tirar o sangue, separar as carnes, desossar, retirar as entranhas e separar a gordura. A primeira vez que tive que fazer isso, fiquei arrependida por ter tomado café da manha. Toda a vez via a faca cortando, o sangue escorrendo, a gordura pingando e as entranhas sendo retiradas, comecava a sentir ânsias. O cheiro era extremamente forte e empesteava toda a casa. O chao estava coberto por papelao, e mesmo assim, a gordura passava através das camadas de papel e ensebava o azulejo.


Depois disso tudo, eles comecavam a preparar as linguicas: cozinhavam o sangue com muito tempero para preparar o chourico (no Paraná a gente chamava o embutido feito de sangue de chourico) e a moer a carne e o torresmo cru com temperos para fazer o embutido típico da regiao. Enquanto isso, uma outra pessoa limpava as tripas do animal para depois rechea-las. Nojento.
Perdi nesse instante a vontade de provar o embutido típico da regiao.


Alguém ja provou isso? eu por sorte, nunca!
Fonte: 
http://img.webme.com/pic/p/paulas-futterkrippe/009.jpg
Depois dessa trabalheira terrivel, que no geral demorava dois a tres dias inteiros, havia o jantar da Matança:
O dono da casa preparava diversos de pratos com a carne de porco: sopas com o caldo da carne (uma sopa com arroz com uma camada de gordura de porco de três centimetros) e uma outra sopa, que no momento em que sentei-me à mesa, nao soube bem ao certo o que era. Em cima da mesa também havia algo bem típico da regiao: Gehacktes. Gehacktes é a carne de porco moída. Nao entendi o porquê da carne estar sobre a mesa crua, com rodelas de cebola. Aí me dei conta, quando o jantar comecou, de que lá ela é consumida crua. Sim, isso mesmo: lá na regiao de Eichsfeld, as pessoas passam carne moida de porco crua no pao e poem umas rodelas de cebola, para depois degustar. Me lembro de que todos se alegravam especialmente nessa parte: todo mundo se servia primeiro de Gehacktes, depois comiam as outras "delícias". A primeiro momento, levei um choque. Na minha cabeca passou um filme:  Eu nunca me esqueci das aulas de ciências da professora Florinda, na sexta série sobre cisticercose e do verme que entra na corrente sanguinea e se aloja na cabeca da gente.
Carne moida de porco crua com pao,
 uma espcialidade culinária
 Eu nao me atrevi a encarar carne de porco crua com pao. Recusei. Isso passa dos meus limites de tolerancia. No Brasil, a gente vê a carne de proco com algo sujo e que se nao for bem preparada e cozida, pode transmitir doencas.
 Expliquei isso para eles, enquanto eles, (na minha visao naquele momento, devido as dadas circunstancias, bárbaros), se deliciavam mastigando com prazer e diziam que a carne era controlada e que isso nao existia aqui. Eu, por via das dúvidas, achei melhor nao arriscar. 
Quem come carne crua, pra mim é bicho.


Havia dois paneloes de sopa sobre a mesa, uma era a sopa com a camada gigante de gordura e uma outra, mais escura. Decidi provar a sopa que parecia ser menos gordurosa. Pus uma concha no prato e já desisti de cara: era uma sopa feita com as entranhas: coracao, rins, e sei lá mais o quê. Já tinha perdido o apetite. Olhei ao redor e vi todos a mesa, que comiam sem pausa, estavam tao concentrados que sequer conversavam. Só se ouvia o mastigar dos convidados. E eu nao tinha achado nada para comer e estavam azul de fome.


Em cima da mesa tinha uma vasilha com uma salada, parecia ser um tipo de maionese. Porém com alguma verdura, envolta em  iogurte natural, molho branco, sei lá o quê. Resolvi provar. Na primeira garfada que dei, senti um gosto super estranho. Perguntei a pessoa que estava ao meu lado o que era: ele me disse que era salada de alface com gomos de tangerina e iogurte. Temperada com salsinha, cebolinha e muito acúcar. Isso mesmo, acúcar. Aí eu desisti de vez.
Busquei com os olhos se havia algo na mesa que pudesse comer e que nao fosse preparado. Achei pao e pepino em conserva. Fora isso, nao me arrisquei em comer nada mais. Tava farta de surpresas desagradáveis já.


E foi assim que num jantar com mais de doze tipos de pratos diferentes, eu fui pra casa com fome.



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